Violência patrimonial corrói a independência de mulheres aos poucos
24 de maio de 2023 | Por Clarissa Machado
Depois do casamento, um homem propõe que sua esposa abandone a carreira profissional para cuidar da casa e dos futuros filhos. O argumento usado é o de que o salário dele é suficiente para sustentar a casa. A mulher passa, então, a depender exclusivamente do dinheiro adquirido pelo marido. Em um outro cenário, durante um divórcio, o marido troca a senha do banco e deixa a ex-esposa, que depende financeiramente dele, sem acesso aos bens. Você provavelmente já escutou alguma história parecida com essas, né? Esse tipo de situação tem nome: violência patrimonial.
Ela é uma das cinco formas de violência contra a mulher previstas na Lei Maria da Penha, e consiste em: “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Em resumo, é uma forma de o parceiro ter controle sobre a vida, o dinheiro, os documentos e outras necessidades da mulher, de modo que ela fique ainda mais suscetível à dominação e às violências cometidas por ele.
Esse é um problema real no Brasil, mas há uma subnotificação de casos: em 2022, o Ministério da Cidadania e dos Direitos Humanos (na época, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) registrou quase 8 mil denúncias de violência patrimonial contra a mulher. É um número expressivo, mas não se compara às 43,5 mil denúncias de violência psicológica sofridas por elas, por exemplo. Como a violência patrimonial também interfere muito no psicológico das mulheres, essas categorias podem se confundir no momento da denúncia. Além disso, para muitas, é difícil entender que essas situações também são um tipo de violência, o que as leva a não denunciar.
Por outro lado, a plataforma Evidências sobre Violências e Alternativas (EVA), do Instituto Igarapé, registrou mais de 84 mil casos de violência patrimonial em 2021. Dez anos antes, em 2011, foram cerca de 12 mil casos. Isso indica que os casos vêm aumentando, mas também é possível que as violações estejam sendo denunciadas com mais frequência do que antes. Um outro estudo, do C6 Bank e do Datafolha, indicou que a pandemia intensificou os episódios de violência patrimonial, principalmente para mulheres e idosos. O impedimento de participar de decisões de compra de produtos e serviços para a casa foi a situação que mais cresceu, se comparado ao período pré-pandemia: houve um aumento de 47% nesses relatos. Além disso, 24% das mulheres disseram que já foram agredidas verbalmente ou humilhadas em temas ligados às finanças.
Independência financeira é um caminho?
Para falar sobre independência financeira feminina no Brasil, é importante esclarecer alguns dados: segundo o IBGE, as mulheres ganham 20% a menos que os homens que trabalham no mesmo cargo, com o mesmo nível de escolaridade, cor e idade. É como se, ao desempenharem um mesmo trabalho, um homem recebesse R$2.000 e uma mulher, R$1.600. Se entrarmos em um recorte racial, a situação piora, uma vez que as mulheres negras ganham menos da metade (45,6%) do salário dos homens brancos. Além disso, quase 4 a cada 10 pessoas em situação de extrema pobreza são mulheres negras.
Esses dados nos mostram que quando o assunto é independência financeira, as mulheres ainda têm um longo caminho a percorrer, o que, inclusive, é um fator de risco para a violência patrimonial. Se os salários são menores e a pobreza é maior entre as mulheres, é mais fácil que um homem consiga convencê-la de que ele é a pessoa mais adequada para administrar o dinheiro e sustentar a casa. E assim, os tentáculos da violência patrimonial vão se enroscando nessas mulheres.
“Infelizmente, é comum ouvir histórias de mulheres que dependem financeiramente de seus maridos e têm dificuldade de trabalhar por precisar tomar conta dos filhos, por exemplo. Isso mina suas carreiras, autoestima e, consequentemente, suas possibilidades financeiras. Se essas mulheres tivessem o conhecimento e o amparo para lidarem melhor com suas finanças e vislumbrar novas formas de conseguir recursos, teriam mais chances de se tornarem independentes. E independência financeira é uma das chaves para a liberdade. Por isso, educação financeira é tão importante”, explica Bia Santos, educadora financeira e CEO da Barkus.
Uma dessas ferramentas é o Programa Mulher Líder desenvolvido pela Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres (Codim) da cidade de Niterói (RJ), “oferece a capacitação profissional com base na liderança, inovação e tecnologia, com ênfase no Empreendedorismo Digital”. A ideia é investir na capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade para que elas encontrem a liberdade na autonomia financeira.
A Barkus oferece um workshop neste programa, com o objetivo de ajudar essas mulheres a lidarem com o dinheiro de forma leve, prática e respeitando a realidade de cada uma. “Entendemos que o empreendedorismo é a porta de saída para mulheres em situação de violência. Só a autonomia econômica pode ajudá-las a romper com o ciclo de violência a que estão submetidas e acreditamos que só com a educação financeira esse processo se concretiza.”, afirma Carla Tavares, coordenadora de empreendedorismo da Codim.
Como anda o acesso das mulheres à educação financeira?
Não há dados recentes sobre esse cenário específico, mas existem alguns indicadores que nos dão uma noção de como está a situação. O Índice de Saúde Financeira, feito pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), constatou que, em 2021, menos da metade (45,6%) dos brasileiros sabiam como se informar para tomar decisões financeiras. Um dos papéis da educação financeira é, não só ensinar sobre finanças, mas também capacitar essas pessoas para que elas consigam continuar buscando informações sobre o tema, de forma consciente e por meio de fontes confiáveis. Se a maioria não sabe onde se informar sobre isso, é provável que essas pessoas não estejam tendo acesso a educação financeira.
Já o Índice de Saúde Financeira realizado no ano anterior, em 2020, trouxe ainda um recorte de gênero: a partir de uma divisão de sete faixas de saúde financeira, foi constatado que havia cerca de 15% de mulheres com uma saúde financeira “ruim”, a pior das categorias; enquanto apenas 8% dos homens ocupavam essa faixa. Quando olhamos para os investimentos, percebemos que 72% das mulheres não investem, enquanto entre os homens, esse número é de 66%. Quando questionadas sobre os motivos para não investirem, a maioria delas (55%) aponta a falta de dinheiro, segundo estudo da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
Até aqui, já vimos que as mulheres ganham salários menores que os homens, mesmo ocupando os mesmos cargos, que a saúde financeira delas é pior, e que elas não investem por falta de dinheiro. Se fizermos um recorte histórico, é possível perceber que até a participação bancária delas, de forma independente, é recente: até a década de 1960, as mulheres só conseguiam abrir contas nos bancos com a autorização dos pais ou maridos.
O questionamento que fica é: se elas tivessem o devido acesso à educação financeira, o cenário das suas finanças seria tão ruim assim? É claro que as desigualdades sociais não seriam extintas, mas, provavelmente, alguns dos problemas citados seriam amenizados. Por isso é tão importante que não só as mulheres, mas todos aprendam mais sobre educação financeira. No entanto, especificamente no caso das mulheres, essa também pode ser uma ferramenta para sair de situações de violência, conforme mencionado por Carla Tavares.
O empreendedorismo também é um caminho possível para a independência financeira feminina e as mulheres têm enxergado essa oportunidade. Entre os 52 milhões de empreendedores brasileiros, 30 milhões são mulheres (57%), classificando o Brasil como o sétimo país do mundo com maior número de empreendedoras, segundo estudo do Sebrae, a partir de dados do Global Entrepreneurship Monitor 2020/2021. Entre elas, 44% são chefes de família e 85% são responsáveis pelas decisões de compra em sua casa, o que deixa claro os motivos de o empreendedorismo ser uma das formas de driblar a violência patrimonial.
Como pedir ajuda?
O fato é que, mesmo que as mulheres se agarrem ao empreendedorismo e à independência financeira para escaparem das violências às quais estão submetidas, ainda é fundamental que os violadores sejam responsabilizados. Vale reforçar que a violência patrimonial é uma das cinco previstas pela Lei Maria da Penha e deve ser reportada aos órgãos competentes.
A medida mais recomendada em qualquer situação de violência é a denúncia. Em casos de violência contra a mulher, é possível denunciar por meio do telefone 180, da Central de Atendimento à Mulher, que também funciona no WhatsApp, ou procurar alguma delegacia de atendimento especializado à mulher.
Compartilhe esse conteúdo